terça-feira, 17 de março de 2009

Akaki Akakievitch e Makár Dievutchkin

Duas grandes obras da literatura russa se encontram suavemente nas páginas de Gente Pobre, primeiro romance do escritor Fiódor M. Dostoievski, que então tinha 24 anos e estava timidamente, sendo acolhido pela intelectualidade petersburguesa. Nessa época, ainda não tinha sofrido os grandes percalços da vida, entretanto, já tinha a mão pesada de escritor. Laborava na dor dos humildes de tal maneira que dedicou aos pobres do subúrbio de Peterburgo seu primeiro livro. Para tal, chegou a se mudar da Malaya Morskaya, rua do centro, perto da Perspektiva Nevskii, para as vilas empanturradas de homens em situação de desespero. Nesse primeiro romance, trataria de um casal que se correspondia por cartas e através dessas tristes figuras, o cotidiano aflorava-se.

Uma obra de Nikolai Gógol, chamada O Capote, vai servir de inspiração para o personagem principal da novela de Dostoievski. Akaki Akakievitch é o personagem principal de O Capote e, este pobre funcionário, cujo próprio nome era motivo de constrangimento, vivia de copiar os textos na repartição, recebendo um modestíssimo soldo que mal dava para a subsistência. Esse personagem, um belo dia, resolve comprar um casaco dispendioso para se apresentar melhor na repartição, pois o habitual estava rôto. Para não ter que resumir a história, pois esse conto de Gógol é fantástico e merece ser lido por aqueles que admiram o estilo russo de literatura, vou dizer que Akaki teve seu capote roubado e caiu em profundo pesar. Sim, mas o que o personagem Makár Dievutchkin de Gente Pobre tem a ver com Akaki Akakievitch, perguntar-me-ão vocês.

O conto de Gógol, bem como sua obra completa, já era um imenso sucesso entre a intelectualidade russa e não caberia bem a Dostoievski, um escritor que estava se iniciando na aventura literária, copiar um personagem tão famoso como Akaki, tendo apenas que trocar-lhe o nome. Mas esse, não era o intento de Dostoievski. Ele quis abordar uma outra possibilidade. Talvez, até afrontar o gigante Gógol. Makár Dievutchkin, que tem as mesmas qualidades, emprego e condições ecônomicas que Akaki Akakievitch, vai começar a frequentar as noitadas literárias de um escritor chamado Rataziáev e fica impressionado como aqueles homens de alta instrução o aceitam naquele ambiente. Ele que era tão humilde, mal vestido, de poucas letras, encontrava-se entre amantes da literatura, que recitavam poemas de Pushkin e citações de Cervantes. O pobre Makár se sente emocionado e relata a experiência para sua parceira de sofrimento, a distante parente Várinka (diminutivo de Várvara) e exalta:

"A literatura é uma cousa bela, Várinka, algo de maravilhoso, segundo pude comprovar ontem na casa de Rataziáev. E, ao mesmo tempo, é uma cousa profunda! Conforta, revigora e ilustra os homens... e outros benefícios causa ainda, que ressaltam nos livros dele. Estão realmente muito bem escritos! A literatura... vem a ser uma pintura, em certo sentido, está claro; um quadro e um espelho; um espelho das paixões e todas as cousas íntimas; é instrução e aperfeiçoamento moral simultaneamente, é crítica e um vasto documento humano. Tudo isto eu ouvi da boca dos companheiros de Rataziáev."

Ao fazer esse depoimento emocionado, Makár recebe a resposta de Várinka, que junto com a carta, envia um exemplar d´O Capote de Gógol, vendo que o amigo interessara-se pela literatura. Porém, ao entrar em contato com a narrativa de Gógol, Makár se enxerga absolutamente no personagem Akaki Akakievitch e chega a imaginar que o homem que tanto admirava (Rataziáev) fora o escritor de tal conto e se passava por Gógol. Makár passa a odiar a literatura, assim como desgostar de sua própria vida, bem mais que dantes. Atira, Makár, contra a literatura:

"Desejavas, filhinha, enviar-me um livro para que eu não me aborrecesse. Deixa isso por enquanto, Várinka; que necessidade tenho eu de leituras? E de que livro se trata? Não há de contar apenas a realidade... Mas também as sátiras e as novelas são disparates, escritas com o propósito de relatar desatinos, para dar que fazer às pessoas ociosas. Crê, filhinha, no que digo: leva em conta os meus longos anos de experiência. E se começarmos por Shakespeare - esse mesmo Shakespeare não passa de um disparate, nada mais que um disparate, um simples livreco de motejo e escárnio, escrito por esses rabiscadores para divertir o público!"

Acredito que Dostoievski quis alargar o personagem d´O Capote ao criar Makár Dievutchkin, na medida em que vai se aproximar da realidade do personagem; seu cotidiano no subúrbio, sua dificuldade em quitar o aluguel do quarto de pensão em que vive, sua honestidade enquanto servidor, sua simplicidade em contraste com os letrados. Nesse momento, vemos os dois escritores e suas obras se encontrarem no terreno da História da Literatura: o mestre Gógol e o aprendiz, Dostoievski. Dizem que o destino do aluno é superar seu professor e nosso profeta Fiódor Mikhailovich tentou fazer isso já em seu primeiro romance. O crítico literário e agitador, Bielinski, ao tomar posse do manuscrito de Gente Pobre, correu à casa de Dostoievski às 3 horas da manhã e o acordou aos berros, gritando no meio da rua: "Temos o novo Gógol! Temos o novo Gógol!"

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